A PAZ SE CONSTRÓI A CADA INSTANTE
Muitos homens sabem que a paz não se estabeleceu de uma vez por todas e para sempre. Então, pensam bastante em tudo o que é preciso fazer para construí-la e evitar a guerra.
A paz pode ser semeada em qualquer lugar, o tempo todo. Ela se constrói quando aprendemos a história do mundo, quando dialogamos com aqueles que têm ideias diferentes, quando reagimos diante das injustiças.
Na escola, os maiores chantageiam os menores. Um dos alunos vai falar com o diretor para acabar com essa chantagem: esse aluno, não fechando os olhos para o que acontece, reagindo, está construindo a paz. O diretor procura os aproveitadores, aplica-lhes uma punição e explica por que estão sendo punidos: ele está construindo a paz.
Aparece um artigo no jornal propondo que se proíba a transmissão de jogo de futebol pela televisão.
Milhares de pessoas reagem e publicam artigos para dizer que não estão de acordo: elas ajudam a construir a paz.
Os líderes de todas as religiões do mundo se reúnem para falar do que têm em comum, de tudo o que é semelhante em suas crenças, da importância da vida. Mostram que é possível dialogar; mesmo não estando de acordo em tudo: eles constroem a paz.
Os homens optam por não esquecer o passado: juntos, lembram-se do fim de uma antiga guerra. Certo dia, em suas famílias ou comunidades, os mais velhos contam aos jovens como aquela guerra começou, como era a vida naquele período, o que poderiam ter feito para evitá-la: eles constroem a paz.
Em diversas cidades da Europa, por exemplo, para recordar o fim da Segunda Guerra Mundial, os homens construíram monumentos em homenagem aos que morreram lutando. Assim, as pessoas não se esquecem de que a guerra existe e que é necessário prestar atenção para que ela não volte.
Nas escolas, os professores ensinam História. E, juntamente com os alunos, tentam compreender por que as guerras explodem em todo o mundo. Raciocinam em conjunto e se perguntam: será que elas podem voltar a acontecer? O que pode ser feito para evitá-las? Agindo assim, eles constroem a paz.
BRIGITTE LABBÉ : Michel Puech. A guerra e a paz
São Paulo: Scipione, 2002.
Cultura da paz
A
cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de poder
que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos
mercados. Essa é a lógica dos dinossauros que criou a cultura do medo e da
guerra. Praticamente em todos os países as festas nacionais e seus heróis são
ligados a feitos de guerra e de violência. Os meios de comunicação levam ao
paroxismo a magnificação de todo tipo de violência, bem simbolizado nos filmes
de Schwazenegger como o “Exterminador do Futuro”. Nessa cultura o militar, o
banqueiro e o especulador valem mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Nos
processos de socialização formal e informal, ela não cria mediações para uma
cutura da paz. E sempre de novo faz suscitar a pergunta que, de forma
dramática, Einstein colocou a Freud nos idos de 1932: é possivel superar ou
controlar a violência? Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos
homens controlar totalmente o instinto de morte…Esfaimados pensamos no moinho
que tão lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de receber a
farinha”.
Sem
detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam poderosas
estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo cosmogênico.
Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta violência em
todas as suas fases. São conhecidas cerca de 5 grandes dizimações em massa,
ocorridas há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões de anos,
pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões de anos. A
expansão do universo possui também o significado de ordenar o caos através de
ordens cada vez mais complexas e, por isso também, mais harmônicas e menos
violentas. Possivelmente a própria inteligência nos foi dada para pormos
limites à violência e conferir-lhe um sentido construtivo.
Em
segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a dominação
do homem sobre a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas sobre
mecanismos de violência como o Estado, as classes, o projeto da tecno-ciência,
os processos de produção como objetivação da natureza e sua sistemática
depredação.
Em
terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como forma de resolução
dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, hoje
globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por isso, gera
guerras econômicas e políticas e com isso desigualdades, injustiças e
violências. Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a
cultura da violência que nos desumaniza a todos.
A
essa cultura da violência há que se opôr a cultura da paz. Hoje ela é
imperativa.
É
imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando, por todas as
partes, o pacto social mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. É
imperativa porque o potencial destrutivo já montado pode ameaçar toda a
biosfera e impossibilitar a continuidade do projeto humano. Ou limitamos a
violência e fazemos prevalecer o projeto da paz ou conheceremos, no limite, o
destino dos dinossauros.
Onde
buscar as inspirações para cultura da paz? Mais que imperativos
voluntarísticos, é o próprio processo antroprogênico a nos fornecer indicações
objetivas e seguras. A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos
primatas superiores reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres sociais
e cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de
afetividade, com-paixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que
desentranhemos tais forças para conferir rumo mais benfazejo à história. Toda
protelação é insensata.
O
ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza e
co-pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de recursos de
re-engenharia da violência mediante processos civilizatórios de contenção e uso
de racionalidade. A competitividade continua a valer mas no sentido do melhor e
não de destruição do outro. Assim todos ganham e não apenas um.
Há
muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger, resgatando uma antiga
tradição que remonta aos tempos de César Augusto, vêem no cuidado a essência do
ser humano. Sem cuidado ele não vive nem sobrevive. Tudo precisa de cuidado
para continuar a existir. Cuidado representa uma relação amorosa para com a
realidade. Onde vige cuidado de uns para com os outros desaparece o medo, origem
secreta de toda violência, como analisou Freud. A cultura da paz começa quando
se cultiva a memória e o exemplo de figuras que representam o cuidado e a
vivência da dimensão de generosidade que nos habita, como Gandhi, Dom Helder
Câmara e Luther King e outros. Importa fazermos as revoluções moleculares
(Gatarri), começando por nós mesmos. Cada um estabelece como projeto pessoal e
coletivo a paz enquanto método e enquanto meta, paz que resulta dos valores da
cooperação, do cuidado, da com-paixão e da amorosidade, vividos cotidianamente.
( Leonardo Boff)
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